segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Desde que não chova (continuação_4)


A imagem daquela Lisboa que via era diferente da que lhe descreviam, vezes sem fim, os pais pela correspondência. Mesmo assim, gostava da cidade e das suas ruas, de ver o eléctrico passar, de passear no Rossio, gostava daquela agitação citadina.
Os estudos corriam bem e de outra forma não poderia ser. Aprendera a bordar e a tocar piano e ainda falava um francês perceptível mas de pronúncia muito singular, muito do seu jeito de menina mulher. Leonor era muito prendada, muito bonita, com um rosto claro e brilhante, que deslizava pelas ruas da capital na companhia da família, raramente com uma amiga e nunca sozinha, como mandavam as boas maneiras. Recolhia-se em casa com um livro ou a bordar, fazia companhia à avó enquanto estudava ou aprendia os cozinhados com a mãe, que tanto gosto fazia em ensinar a filha, a luz dos seus olhos, único rebento de um amor com o único homem que conhecera. Leonor não se podia queixar do que tinha. Só de quem não tinha.
Era o seu terceiro ano no colégio, um dos melhores da cidade, com bons professores e com colegas também eles bons alunos e jovens de boas famílias. O colégio, assim como a professora de piano, as aulas particulares de francês ou a ama que a ensinara a bordar, eram um esforço que os pais faziam para que Leonor tivesse um futuro de braços abertos à sua espera, como os pais haviam sonhado para ela: bem casada, uma senhora prendada e de respeito. Tinha vivido até aos 14 anos com a avó na vila onde nascera e de onde o pai saiu para ser secretário de um banqueiro amigo de família mas que fruto da sua extrema competência e empenho, foi promovido a chefe dos serviços de secretariado do Banco, cargo honroso e respeitado, que desempenhava com o orgulho de quem cumpre uma missão. A sua mãe acompanhou o marido mas as condições não permitiam oferecer ainda à Leonor tudo o que os pais sonhavam dar-lhe, e juntamente com a incerteza dos resultados desta mudança, não havia necessidade de tirar a menina da escola e de junto dos amigos. Ficou então, com a avó, e terminado o ensino regular do 9ºano, mudaram-se ambas para Lisboa, já as condições o permitiam e a saudade o determinava. Já tinham uma casa grande, mobilada, bom emprego e grupo de amigos para o senhor, boa companhia e várias lojas para a senhora, a quem faltava ouvir as palavras sábias da mãe e a filha para educar.

Embora uma mudança seja sempre uma mudança, quando se tem apenas 14 anos, mudar do campo para a cidade, da avó para os pais, de uma escola pequena para um colégio e de amigos que conhecia desde sempre para novos rostos e novas formas de estar, é mudar demais. Leonor sentiu isso, mas nem sempre deixava transparecer. Sentiu por tudo mas muito mais por alguém que lhe incendiava o peito, alguém que era tão amigo como namorado, com quem caminhava de mãos dadas desde a escola até ao rio, ao fim da tarde. Ela amava o Luís com tudo o que é possível amar naquela idade. E amava cada dia e cada momento, cada mergulho no rio e cada passeio pelos campos, pois sabia que não lhe restava muito tempo até partir para junto dos pais e para longe dele. Talvez por isso esteve sempre preparada, sempre mentalizada que partiria, mais dia, menos dia, mas ainda assim aproveitava tudo o que podia.
Desde que chegou a Lisboa que guardou no fundo de um gavetão a fotografia dele. Voltava apenas à vila, anualmente, pelas festas de S. Sebastião do Campo. No entanto, pensava nele todos os dias, sem que ninguém soubesse da saudade que sentia e da falta que a espontaneidade dele lhe fazia. Voltava sempre com os pais quando chegava o tão esperado dia da festa, voltava para rever os amigos antigos mais genuínos que os novos, as ruas tão diferentes das de Lisboa, os cheiros tão mais intensos e revigorantes, e claro, o Luís, tão especial que o tempo passava por ele e parecia que ainda tinha 10 anos. Leonor voltou sempre à vila por tudo isto, menos nesse ano.

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