quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ponto final

Faz hoje um ano que este blog foi criado e que teve o seu primeiro texto. Um ano e quase mil visitas. Foi bom enquanto durou mas neste momento há outras prioridades e por isso este blog tem hoje, no dia do seu 1º aniversário, um ponto final. Não sei se a história terá continuação e isto é apenas um parágrafo ou se é um ponto final definitivo. Seja como for, um grande obrigado aos meus amigos que sempre passaram por aqui, criticaram e me ajudaram a melhorar. Muito obrigado à minha "editora". E claro, muito obrigado a ti que passas aqui sem ninguém saber só pra ler mais um texto.

Obrigado.

Até qualquer dia.

fio de dias


Os dias são partes divisíveis da vida. Há dias longos, dias frios, dias tristes, dias insignificantes e dias que nunca passam disso mesmo: dias. O que liga esses dias, o fio dos dias, é um continuar de memórias que os entrelaça como quem faz renda. Por isto, não são os dias sem ti que me custam mais só por serem longos, frios, tristes e insignificantes, o que me custa é a memória de que já tive dias breves, quentes, alegres e plenos de significado contigo ao meu lado e tenho de continuar a fazer a renda desta vida para que chegue o dia de te voltar a ter junto a mim.
Nesses dias em que vens como um raio de sol que cega à vista desarmada, nesses dias tão esperados e imprevisíveis como tu, chegas com a mesma doçura com que abres as portas do meu coração, quando entras, no fim dos dias longos que morrem à tua chegada, esses dias frios sem a tua pele quente por perto, tristes por não te terem e sem significado porque não lhes ensinaste nada, nem precisas de palavras para revelar o que sentes pois os teus olhos já me contaram essa história sem que tenhas notado.
Nem sempre preciso de te ver, porque o amor que cega e ensurdece também mostra coisas que mais ninguém vê e eu vejo-te a acordar, a olhares-te ao espelho com o requinte de menina adolescente antes de mais um dia no mundo que te espera lá fora, longo, frio, triste e insignificante pois as mulheres como tu precisam de um pouco mais mesmo que não o saibam.
E então, esses dias vão passando ao ritmo que marcam para si mesmos sem se importar com o que nos custa ou não a passá-los. Não te entristeças com a distância nem sintas pena de mim por te esperar tanto, porque o tempo é sempre pouco quando sei que estás próxima, os dias bons são os que te trazem até mim e todos os dias me trazem sempre algo de ti que eu recebo e guardo no coração e na alma, estejas perto da minha ausência ou longe da minha companhia.
Esta ambição de te ter por perto, que às vezes também se engana, é marcada pelo tempo num relógio sem ponteiros, não tem data nem lugar e quem sabe se nós não acertámos no tempo, na data e no lugar que estão marcados por nós e para nós, como um presente que oferecemos um ao outro.
Por isso, a espera desse tempo, data e lugar é quase nada e quase tudo, vai-me guiando pela vida à espera que cresça e se torne naquilo que há-de ser. E é sempre pouco, quando se tem tanto para dar e receber.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

tinta seca

Meia luz na sala, tanta quanta empresta a lua cheia. Ali ao canto, numa secretária velha como o tempo mas resistente como a dor, um homem abatido e de olhar parado toca levemente o papel das cartas de amor cujo cheiro a mofo se vai misturando com o fumo do cachimbo e um nauseabundo odor a aguardente. As manchas de humidade que se alastraram entre as frases marcam o ritmo dos anos que já passaram sobre aquele papel, sobre aquelas palavras, mas não sobre o seu significado.
Segurando tranquilamente uma carta numa das mãos, com a firmeza de quem tem a razão do tempo em seu poder, tem na outra um copo cheio do remédio para os seus males, que vai tremendo até chegar à boca. Lentamente, ele acaricia o relevo que a tinta deixou a cada palavra, seguindo linha a linha para não perder o fio da história de menina enamorada que dessa vez ela contava. Com as pontas dos dedos, sentia a voz trémula dela a suspirar que ele voltasse rápido e inteiro dessa maldita guerra. Com os olhos aguados, ele quase via no verso da folha as feições do rosto dela, já envelhecida, já cansada, quando o acordava dos traumas mal consertados. E em cada rude gole ele encontra-a novamente, anos depois de ela o ter deixado, na cadeira de baloiço onde fechou os olhos sem sofrimento, como sempre pedira ao seu senhor Jesus Cristo. E quando essa imagem lhe assalta a mente, fecha os olhos e dá mais um bafo no cachimbo, amparando esse sofrimento desmedido, deixando o fumo entrar naquele peito para procurar o que dela lá resta.
Há-de adormecer debruçado nessa secretária, tresandando a álcool e a fumo, e tristemente acordará para mais um dia. De fraca figura e rosto cavado, há-de sair manhã cedo para levar uma vela e uma flor ao lugar onde ela repousa, e depois, enganará a fome com um naco de broa e um tanto de chouriço, até ir ao jardim dar o que sobrou aos pombos que o cercam.
Sem ninguém que lhe possa valer na solidão ou o possa acompanhar na saudade, repete esta jornada, sabendo no fundo que um dia se vai entorpecer num banco de jardim, com a boca seca e os dedos a sentirem falta da tinta seca daquelas cartas. Como tantos outros, infelizmente.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

enquanto eu dormia


Estava frio quando saíste e encostaste a porta, com mil cuidados, para eu não acordar. Pensavas tu que eu ainda dormia, mas não.
Senti-te despertar e descolares o teu corpo do meu, lentamente, ainda bem cedo. Sentaste-te na cama, suspiraste, e pareceu-me que voltaste o pescoço para me olhares. Deve ter sido sobre o ombro direito, enquanto alisavas o cabelo sobre o lado esquerdo do peito, e também deves ter inclinado um pouco a cabeça, tentando alinha-la com a minha, como fazes sempre. Tu pensavas que eu dormia profundamente, mas não. Enquanto reunias a roupa espalhada pelo chão do meu quarto, eu sentia a batida de cada passo teu e de olhos fechados imaginava o percurso que fazias, a satisfação que sentias por vestires apenas a minha t’shirt larga e mesmo assim estares perfeita. Deixei-me ficar com os olhos fechados, cabeça enterrada na almofada, cheirando o que restava de ti naquela cama e recordando os arrepios que me trepavam a cada beijo teu. Estava frio e eu cheguei os cobertores ao pescoço, sentindo a tua falta, antecipando uma rotina que se repetiria vezes demais.
Quando abri os olhos pela primeira vez, estavas de costas a sair, encostando atrás de ti a porta, com mil cuidados. Olhei para o chão e no caminho entre a minha cama e a tua porta lá estava ela, a minha t’shirt que te ficava tão larga como sensual e que tu deixaste para trás, ao sair por fim, sem me acordares.
Foi a última vez que usaste um pouco do meu perfume só para me levares contigo, a última vez que te sentaste na cama e me olhaste sobre o ombro direito, enquanto alisavas o cabelo no peito esquerdo, foi a única vez que saíste por aquela porta e deixaste a minha t’shirt no chão.
Quando acordei a meio da noite, agitado e suado, demorei uns segundos a perceber o que se passava. Então senti a tua cabeça deitada no meu ombro e aos poucos percebi que estava apenas a sonhar. Respirei fundo de alívio, vi o teu ar tranquilo e profundo enquanto dormias, usando a minha t’shirt, e voltei a adormecer.

Obrigado pela ajuda, Leila

terça-feira, 20 de julho de 2010

o teu amanha


Queria ser novamente criança e escrever-te uma carta. Queria escreve-la e colocar nela o meu perfume, na esperança de que ao me inspirares, me levasses contigo. Davas-me a mão, partíamos para onde quer que fosse, inocentes ou felizes, talvez ambos, porque a inocência é a maior felicidade e assim tudo é mais fácil, é mais simples, mais natural. Nesses dias, bastava sentares-te à minha frente, entre as minhas pernas, e deixares-te cair no meu peito, lentamente, para eu te sussurrar os versos que tinha escrito na sala de aula, quando parecia distraído, enquanto olhavas para mim de fininho com medo que eu encontrasse o teu olhar desprevenido e tu corasses de vermelho timidez, versos que saiam ao ritmo dos teus suspiros, baixinhos, lentos, prolongados. Então ficávamos ali, suspensos sem tempo nem espaço, entre sussurros e silêncios, partilhando as batidas que marcavam o ritmo da nossa inocência, da nossa felicidade, enquanto não tínhamos perguntas nem queríamos respostas, enquanto nos bastava saber que existe um amanhã, lá ao longe…

Mas tu nunca recebes-te essa carta, talvez porque eu nunca a tenha escrito, é verdade, mas só sei que nunca me deste a mão e esses versos que ainda eu hoje sei sussurrar, já não são inocentes nem felizes, já fazem perguntas e exigem respostas e por isso, vou amarrota-los e atira-los da minha cabeça, não num teu amanhã porque ainda está lá longe, mas num meu ontem porque já se fez tarde. Vão-se os versos mas ficas tu, porque na vida guardamos melhor quem nos marca por ficar do que quem marca por partir.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

esta estrela que te dou


Do mundo em que vives, esse mundo em que deslizas sobre as pedras gastas da calçada, onde cai a chuva que te lava a alma e onde sopra o vento que te leva os suspiros, desse mundo que é muito povoado e por isso nunca estás sozinha, mas também demasiado grande e por isso sentes a falta de alguém, olhas o céu e nele vês as estrelas onde eu gostaria de estar contigo.

Roubei uma estrela ao céu, para ti. Para nós… Para que possamos lá ir e esquecer de todos os lugares onde estivemos, para contarmos histórias da nossa história, nós que somos amigos há mais anos do que os que vivemos. Eu, que acho que nasci com uma alma nova, porque olho para o mundo e vejo estrelas, já te conheço dos meus sonhos, onde não tinhas rosto nem nome, mas eu lembro-me de ti, eras tu. Tu, que vens de uma época sem tempo, dias que não vivi, percorreste um caminho que se cruzou com o meu num lugar improvável, numa data inesperada, e que hoje, tens esta estrela só para ti. Só para nós…

Anda daí. Vem comigo percorrer esse trilho que os olhos imaginaram e que o coração fez sonhar, esse caminho de querer e de sentir, onde queres ir para sentir que os sonhos têm uma estrela como palco.

Esta estrela que te dou, não é perfeita. Não tem o calor do pôr-do-sol nem a frescura da água do mar, não tem o verde da natureza nem o azul do céu, não tem o voo dos pássaros nem o cheiro das flores. Falta muito nesta estrela, para que seja perfeita. Falta-lhe tanto que nem sei o que já tem. Mas aqui, nesta estrela que roubei para nós, nunca te faltará o calor de um abraço, a frescura de um beijo, um ombro para chorares os danos que sofres neste mundo ou um riso descontrolado para partilhares o que neste mundo te faz jubilar.

Neste mundo, nem sempre conseguimos encontrar-nos no tempo presente, por isso reavivo o nosso passado e imagino o nosso futuro. Deste mundo onde nem sempre tens tempo para mim e nem sempre eu o tenho para ti, olho a nossa estrela e acredito que voltarás sempre, porque se a vida é um eterno regresso a casa, a amizade é um amor eterno. Essa estrela é o lugar perene da nossa amizade, dos regressos desejados, dos dias sem fim e de um sem fim de dias que serão nossos na nossa estrela.

Podes ter a certeza que o tempo em que estamos com aqueles que nos querem bem é sempre um tempo ganho, como quem acumula pontos de felicidade para o futuro. Mesmo que seja na nossa estrela, ou cá em baixo, neste mundo, tanto faz o tempo e o lugar, o que conta é o modo de ser e de amar.

Inspirado e com trechos de "Anda daí" de Margarida Rebelo Pinto, de 23 de Março de 2005

quinta-feira, 24 de junho de 2010

deusa

A minha deusa é ainda mais bela por não saber que é uma deusa.

A minha deusa é de uma altura que não imagina. Não dessa altura que se mede mas daquela que se sente. Aquela altura que não se toca nem se vê e que a coloca superiormente sobre o meu mundo.

Tudo nela é simples e ao mesmo tempo perfeito, do tamanho dos olhos ao do coração. Possui uma cintura de vespa e um cabelo farto e despenteado, como tão bem lhe compete e melhor lhe assenta. Como todas as deusas, parece eternamente jovem e reina sobre tudo o que a rodeia sem sequer dar por isso.

É tão bonita por dentro como é por fora. Tem a força de um sonho e a sensibilidade de uma lágrima. Ela, a minha deusa, que sonha e chora, não sonha nem chora sozinha porque eu vivo os seus sonhos e choro as suas lágrimas.

A voz é de menina, leve e solta, tão suave que muda o sentido das palavras, própria dos seres que não são bem deste mundo. Nas mãos é capaz de segurar o vento, com aquela capacidade de prender o que devia ser de todos, mas que ela, involuntariamente, capta e prende em si, obrigando-me a mim que sou mais vagabundo que o vento, a fixar-me nas suas palmas. E depois, sorri, inocente, continuando sem saber que é apenas uma deusa, vivendo neste mundo de pagãos incapazes de a compreender.

Não sabe que todos os dias faz milagres com apenas um sorriso, não mede a generosidade com que trata os amigos, não sonha o quanto as pessoas gostam e precisam dela. Mas há deusas assim, que passam pela vida sem adivinhar o que são, como se fossem iguais às outras mulheres e que encolhem os ombros perante os seus defeitos, numa discrição congénita, quase tímida, quase infantil, desconhecendo o imenso poder que emanam.

Não preciso de rezas nem de altar para a minha deusa, basta-me a memória, que me traz o calor do seu abraço, a imagem do seu sorriso com brilho nos olhos, o som das palavras com que me revela a sua história e o cheiro a mel do seu pescoço. Para a ter comigo, em qualquer instante, basta-me fechar os olhos e respirar profundamente.

Se os homens fossem deuses, nasceriam e morreriam nos braços de uma mulher. Se eu fosse também um deus queria ficar com ela e ver o mundo mudar à sua volta enquanto o tempo passa sem lhe tocar, porque as deusas são eternas. E mesmo que um dia tudo acabasse, sei que teria tido a maior sorte do mundo, porque vivi na terra com uma deusa e poucos mortais têm tão rara e melhor sorte.

terça-feira, 2 de março de 2010

Um dia...


Adoro café, curto e bem quente. E com o café gosto do jornal do dia, de conversar com os amigos, de discutir futebol, de debater política ou simplesmente de nao fazer mais nada. Assim como adoro café, adoro palavras, desculpem, amopalavras. E adoro frases também, daquelas que sintetizam anos de histórias e de certezas. Adoro aquelas frases que me deixam a pensar e que me obrigam a dizer: nem mais!

A Nicola tem uma campanha que coloca frases, provérbios, adivinhas, cúmulos e outros afins nos seus pacotes de açucar. A campanha que agora está em vigor é "Um dia" que coloca aquelas frases que dizemos a nós mesmos vezes sem conta, adiando diariamente esse dia.

Nos últimos dias tenho saboareado o café e a frase do dia no Ritual, normalmente com os amigos mais chegados e por vezes sozinho. Seja como for, bebo o café e fico a pensar na frase. As vezes rio-me sozinho, às vezes fico a pensar, às vezes desço à terra, às vezes fico inspirado... Já tenho algumas guardadas em casa, gosto mesmo muito das que tenho.

Um dia uma amiga disse-me: "Tenho um presente para ti e sei que vais adorar". Estou a espera que a minha "editora" me dê um meu pacote de açúcar igual a este.



É por isto que eu adoro palavras. Desculpem! É por isto que amopalavras.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Palavras para quê?

As palavras, ditas ou escritas, são muitas vezes mais do que usadas... são abusadas. Por isso, hoje não vos escrevo mas deixo-vos uma história, simples e diferente.

"SIGNS" é uma curta-metragem premiada na ultima edição do Festival Cannes Lions.

Espero que gostem.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Ao espelho


Há qualquer coisa de profundamente irresistível nas mulheres, que nos escravizam na sua meninice e que nos diz que serão sempre crianças, mesmo que o tempo passe. O olhar aceso de quem vai à escola para aprender, o andar certinho de menina mulher, os cabelos penteados com carinho mas que teimam em desgrenhar, as mãos finas e suaves, e claro, o riso baixinho e traquinas. São meninas para sempre e podem viver para sempre no coração de um homem.
Tu és assim, uma espécie de menina capaz de grandes tropelias que escondem a idade atrás da simplicidade que nunca perdeste, apesar de todas as marcas que foste herdando dos dias; a infância guardada numa caixa escondida debaixo da cama, a adolescência de descobertas e erros, os amigos e namorados, os beijos inventados sem saberes que eram achados, as desilusões com os outros e contigo porque quereres ser o que não és e ter o que não tens, a vontade de sair de casa e abraçar o mundo, e depois, a solidão repartida entre os homens que desejaste e nunca tiveste e os outros, os que te incendiavam o corpo e te deixavam o coração em pedra porque nunca os amaste.
Depois cresceste, começaste a trabalhar, a usar vestidos e saltos quando era preciso, mas não é por eles que és bela nem sublime. Para o seres basta sorrires com o coração e deixares que os teus olhos brilhem da mesma forma pura como te comove a tristeza dos outros, aqueles que desejas que tivessem mais que dois braços pois neles não cabe o mundo mas sobra o espaço dos sonhos que se esfumam.
E agora, todas as manhãs, ao espelho, perguntas à tua imagem quem és tu afinal! Vives numa cidade que foi sempre tua de memórias mas nem sempre de contacto, que não é tua nem de ninguém embora seja de todos nós, numa casa pequena demais para os teus sonhos que se dissolvem no vapor do duche da mesma forma que se dissolveram um ou dois homens que não soubeste ou quiseste amar da forma certa, aquela que faz com que as pessoas continuem juntas pela vida, como se tivessem sido separadas à nascença e um fio invisível as voltasse a unir para sempre. E perguntas à tua imagem onde vês uma mulher menos bela e menos sublime do que na realidade és, se esse homem já passou pela tua distracção ou se a divina providência ainda to pode trazer, vestido de Verão com os cabelos queimados do sol e um sorriso tão sem idade como o teu. Imaginas a sua chegada como se saltasse o muro que divide o vosso mundo, as pernas compridas e os braços fortes, o cheiro adocicado da pele morena, a boca a pedir atenção e o olhar a perguntar-te se o vais escolher, quando foi ele que já te escolheu e só te está a dar a ilusão que és tu que mandas na tua vida.

Ao espelho, onde vês o reflexo entre a mulher que és e aquela que gostarias de ser, respiras fundo e desejas que esse homem chegue um dia, mas não demasiado cedo para te assustar nem demasiado tarde porque entretanto pode aparecer outro e tu vais deixar-te ir, convencida que é esse e não eu o homem da tua vida.
O que tu não sabes minha gerbera luminosa, é que do outro lado do espelho eu te vigio como se fosse o teu avesso, e te protejo como se fosse o teu presente, e te desejo, como se pudesse ser o teu futuro.
Mas é ainda demasiado cedo, é ainda tempo de guardar no silêncio dos dias a vontade de te querer. É ainda de manhã e tu estás atrasada para o trabalho e eu estou adiantado na tua vida, por isso respiro fundo do outro lado da tua imagem e espero, sentado no sótão da tua existência, lá mesmo em cima para que não me vejas, que um dia dês o salto para o outro lado da tua vida e sejas quem sempre sonhaste ser, para que te vejas ao espelho como eu já te vejo, como tu és, bela e sublime.

Adaptado de um original de Margarida Rebelo Pinto, "Ao espelho".
Disponível em: http://margarida.clix.pt/textos_ineditos_texto.php?op=44f683a84163b3523afe57c2e008bc8c