domingo, 27 de dezembro de 2009

domingo, 20 de dezembro de 2009

Nem tão quente que queime, nem tão frio que arrepie

O café curto, intenso e bem acompanhado com um pau de canela, acabava de chegar. Lá fora, na rua cheia de gente, brilhava um pouco de sol e cá dentro o Majestic estava sereno, respirando ao sabor do piano. Bebi o meu café e espreitei o relógio: a tarde ainda ia curta e antes de sair para te encontrar, ainda tinha tempo para me reconfortar na cadeira e imaginar como seriam aqui as tertúlias dos anos ‘20. Fui depois por Santa Catarina, mesmo no coração da “Antiga, Mui Nobre, Sempre Leal e Invicta”, inspirando o ar frio e vendo o sol quente. Reconfortei-me no cachecol e apertei as mãos nos bolsos do casaco. Dirigi-me até aos Aliados, quase sem me aperceber, como se fosse guiado inconscientemente. As ruas estavam cheias de decorações natalícias, diferentes da última vez que aqui vim mas tão encantadoras como nos outros anos!

Já nos Aliados vi a grande árvore de Natal que se impunha no centro da avenida. Olhei-a de alto a baixo, despida das luzes que a realçam de noite, vi-a nua e exposta aos olhares de quem passava. Parecia agora bem mais pequena e menos imponente, mas mesmo assim, qual Cavaleiro da Dinamarca, é para aqui que me dirijo como num regresso a casa. Aproximei-me e observei-a mais de perto, vendo separadamente cada lâmpada apagada, olhando bem para cima para a estrela que apenas brilhava com os raios que o sol lhe emprestava. Sorrio-lhe, incentivando-a a brilhar esta noite mais do que nunca, pois serão muitos os que precisarão mais logo que os guie.

Desci a S. Bento e furei depois, entre lojas e esplanadas, até ver o reflexo das casas diluído na água, como se o rio fosse um espelho e retribuísse a imagem de beleza que uma cidade empresta à outra. Sentei-me bem perto da água ouvindo atrás de mim o som dos passos e das conversas cruzadas, deixando-me navegar nas correntes de ideias em que o Douro me leva. O cheiro a castanhas assadas despertou-me, agora que me reconfortava nesta pedra fria e consumida pelos anos, que me acomodava a ver os rabelos passar bem próximos e degustava um Porto sem que uma única gota do cálice me encharcasse a boca. Apesar de vir aqui frequentemente, todos os dias são especiais porque há sempre algo que renova a paixão por este lugar.

Tiro o mp3 do bolso, ligo-o directo à banda sonora destas margens, idealizada por dois génios, eternizada com letra e voz. Este Porto Sentido bate fundo, bate na alma de quem chora lágrimas frias como o orvalho matinal e com elas rega as melhores vinhas do mundo. Bate nas mãos dos caxineiros, aquecendo-as quando seguram ainda de madrugada as redes no alto mar, a fim de trazerem o suficiente para enganar a fome. Bate fundo na memória do engraxador que puxa o brilho aos sapatos dos senhores, imitando o pai de quem herdou os clientes. Bate fundo em todos os que se sentem em casa quando atravessam o rio junto à serra do pilar, que se alegram ao ver o casario interminável e que caminham pelas pedras sujas e gastas da calçada. Bate-me fundo a mim que fujo para aqui e me perco neste quadro que tento pintar quando estou longe.

É embalado na música, nos pensamentos, no paladar do cálice de Vinho do Porto, no orgulho por ter nascido e crescido aqui, levado pelo frio da pedra e pelo cheiro das castanhas, é assim que sinto a tua chegada quando me abraças por trás. Como és sempre pontual nem abro os olhos. Sentas-te ao meu lado, roubas-me um beijo ao mesmo tempo que um dos phones e encostas-te no meu ombro. Aqui sentados durante horas, ancorados um no outro e encalhados na ribeira, admiramos os nossos silêncios e encontramos neles a paz e a segurança de que precisamos para sermos felizes. Captamos em sintonia a brisa e o sol, este rio que será mar lá ao fundo, esta paisagem que nos arrebata como se nos quisesse imortalizar também. Entre pontes, aprendi contigo a inspirar fundo não para abrir o peito mas para abrir a alma, aprendi a deliciar-me com a brisa fresca que desce os vales e a captar o sol quente que se aninha no cabedelo. Pede ao sol que nos aqueça um pouco mais, tu que o conheces como ninguém. Eu trago a brisa fresca outra vez e podemos ficar aqui enquanto durar a emoção. Pedimos, juntos, ao sol e à brisa que não se despeçam já, não agora, que nem está tão quente que queime nem tão frio que arrepie… mas não pode ser, porque a grandeza destes momentos é proporcional à sua efemeridade. Nesta pedra fria e velha, agora que a música acabou e os rabelos chegam com as últimas pipas, a brisa já não arrepia e o sol quente já se foi, despedimo-nos por momentos do paraíso e seguimos para casa.

De mãos dadas, subimos as ruas enquanto cai a noite. A árvore de Natal dos Aliados já está acesa, já ilumina muitos corações que estão sozinhos. Na Trindade, um velho louco canta pela noite fora, bem fundo, como se tivesse garganta de tenor, ao ritmo das moedas que lhe caem no chapéu, ele que está rouco do bagaço, bêbado de solidão e de miséria. Mais logo, depois da missa do galo, passamos aqui novamente para ouvi-lo cantar a derradeira música, pedindo a última moeda a quem queira ver como os seus olhos brilham mais que as luzes de Natal, mesmo antes de saber em que jardim vai dormir.

É com esta banda sonora triste que caminhamos para casa. Mas não caminhamos sozinhos pois levamos os amigos que connosco riem e choram, a família que transforma dias normais em momentos únicos, levamos os que como nós se guiam pela árvore de Natal para estarem onde pertencem nesta noite tão especial. Sei que não te preciso de pedir para os levar a todos. Sei que não te esqueces de ninguém nem me deixas faze-lo.

Deixamos a lareira arder bem quente enquanto conversamos e brincamos a fazer planos só para nos rirmos, porque sabemos que mais vale um dia de surpresas que uma vida de expectativas. Ceamos e brindamos com o cálice bem frio, para arrepiar a emoção de um Natal onde somos o melhor presente que oferecemos um ao outro.



terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Desde que não chova - Fim


Apesar de seguirem o mesmo caminho, em sentidos opostos, em momentos tão próximos, dormiam no ombro um do outro mesmo sem saberem, mesmo sem imaginarem que estavam tão perto. O amor que sentem, um amor único que se divide em dois para que cada um sinta a sua parte, não se encarregou até esse dia de garantir que essas metades do mesmo amor se voltassem a unir, talvez porque nem tudo o que se divide se pode voltar a juntar. Esse amor deveria existir para que não chorem mais pela ausência um do outro, para que a distância não determine o que a saudade questiona e para que seja festa sempre que os suspiros sejam mais intensos que os foguetes.

Esse amor poderia provar muita coisa se os tivesse unido. Irá ainda a tempo de o provar? A maior prova que nos deixa é que por si só é insuficiente. Não basta amar nem lutar se não se conjugarem o momento, o lugar e as pessoas. Aquela festa, aquele rio, estes dois apaixonados não bastam para que um barco parta rumo à felicidade. Um dia esse barco partiu apenas com ele. Outro dia estava lá ela mas o barco nem chegou a sair daquele porto. Se fossem juntos nesse barco, estariam agora nos braços um do outro a sorrir, enquanto vivem, e não no ombro um do outro a sonhar, enquanto dormem.

O amor é uma festa e uma festa é a conjugação do momento que se vive, do lugar onde se dança e das pessoas com quem se festeja. A vida continua e para que haja sempre festa, para que se dance e se festeje a vida, para que se dance e se festeje o amor, os velhos só pedem que não chova.