quarta-feira, 18 de agosto de 2010

tinta seca

Meia luz na sala, tanta quanta empresta a lua cheia. Ali ao canto, numa secretária velha como o tempo mas resistente como a dor, um homem abatido e de olhar parado toca levemente o papel das cartas de amor cujo cheiro a mofo se vai misturando com o fumo do cachimbo e um nauseabundo odor a aguardente. As manchas de humidade que se alastraram entre as frases marcam o ritmo dos anos que já passaram sobre aquele papel, sobre aquelas palavras, mas não sobre o seu significado.
Segurando tranquilamente uma carta numa das mãos, com a firmeza de quem tem a razão do tempo em seu poder, tem na outra um copo cheio do remédio para os seus males, que vai tremendo até chegar à boca. Lentamente, ele acaricia o relevo que a tinta deixou a cada palavra, seguindo linha a linha para não perder o fio da história de menina enamorada que dessa vez ela contava. Com as pontas dos dedos, sentia a voz trémula dela a suspirar que ele voltasse rápido e inteiro dessa maldita guerra. Com os olhos aguados, ele quase via no verso da folha as feições do rosto dela, já envelhecida, já cansada, quando o acordava dos traumas mal consertados. E em cada rude gole ele encontra-a novamente, anos depois de ela o ter deixado, na cadeira de baloiço onde fechou os olhos sem sofrimento, como sempre pedira ao seu senhor Jesus Cristo. E quando essa imagem lhe assalta a mente, fecha os olhos e dá mais um bafo no cachimbo, amparando esse sofrimento desmedido, deixando o fumo entrar naquele peito para procurar o que dela lá resta.
Há-de adormecer debruçado nessa secretária, tresandando a álcool e a fumo, e tristemente acordará para mais um dia. De fraca figura e rosto cavado, há-de sair manhã cedo para levar uma vela e uma flor ao lugar onde ela repousa, e depois, enganará a fome com um naco de broa e um tanto de chouriço, até ir ao jardim dar o que sobrou aos pombos que o cercam.
Sem ninguém que lhe possa valer na solidão ou o possa acompanhar na saudade, repete esta jornada, sabendo no fundo que um dia se vai entorpecer num banco de jardim, com a boca seca e os dedos a sentirem falta da tinta seca daquelas cartas. Como tantos outros, infelizmente.