segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Ao espelho


Há qualquer coisa de profundamente irresistível nas mulheres, que nos escravizam na sua meninice e que nos diz que serão sempre crianças, mesmo que o tempo passe. O olhar aceso de quem vai à escola para aprender, o andar certinho de menina mulher, os cabelos penteados com carinho mas que teimam em desgrenhar, as mãos finas e suaves, e claro, o riso baixinho e traquinas. São meninas para sempre e podem viver para sempre no coração de um homem.
Tu és assim, uma espécie de menina capaz de grandes tropelias que escondem a idade atrás da simplicidade que nunca perdeste, apesar de todas as marcas que foste herdando dos dias; a infância guardada numa caixa escondida debaixo da cama, a adolescência de descobertas e erros, os amigos e namorados, os beijos inventados sem saberes que eram achados, as desilusões com os outros e contigo porque quereres ser o que não és e ter o que não tens, a vontade de sair de casa e abraçar o mundo, e depois, a solidão repartida entre os homens que desejaste e nunca tiveste e os outros, os que te incendiavam o corpo e te deixavam o coração em pedra porque nunca os amaste.
Depois cresceste, começaste a trabalhar, a usar vestidos e saltos quando era preciso, mas não é por eles que és bela nem sublime. Para o seres basta sorrires com o coração e deixares que os teus olhos brilhem da mesma forma pura como te comove a tristeza dos outros, aqueles que desejas que tivessem mais que dois braços pois neles não cabe o mundo mas sobra o espaço dos sonhos que se esfumam.
E agora, todas as manhãs, ao espelho, perguntas à tua imagem quem és tu afinal! Vives numa cidade que foi sempre tua de memórias mas nem sempre de contacto, que não é tua nem de ninguém embora seja de todos nós, numa casa pequena demais para os teus sonhos que se dissolvem no vapor do duche da mesma forma que se dissolveram um ou dois homens que não soubeste ou quiseste amar da forma certa, aquela que faz com que as pessoas continuem juntas pela vida, como se tivessem sido separadas à nascença e um fio invisível as voltasse a unir para sempre. E perguntas à tua imagem onde vês uma mulher menos bela e menos sublime do que na realidade és, se esse homem já passou pela tua distracção ou se a divina providência ainda to pode trazer, vestido de Verão com os cabelos queimados do sol e um sorriso tão sem idade como o teu. Imaginas a sua chegada como se saltasse o muro que divide o vosso mundo, as pernas compridas e os braços fortes, o cheiro adocicado da pele morena, a boca a pedir atenção e o olhar a perguntar-te se o vais escolher, quando foi ele que já te escolheu e só te está a dar a ilusão que és tu que mandas na tua vida.

Ao espelho, onde vês o reflexo entre a mulher que és e aquela que gostarias de ser, respiras fundo e desejas que esse homem chegue um dia, mas não demasiado cedo para te assustar nem demasiado tarde porque entretanto pode aparecer outro e tu vais deixar-te ir, convencida que é esse e não eu o homem da tua vida.
O que tu não sabes minha gerbera luminosa, é que do outro lado do espelho eu te vigio como se fosse o teu avesso, e te protejo como se fosse o teu presente, e te desejo, como se pudesse ser o teu futuro.
Mas é ainda demasiado cedo, é ainda tempo de guardar no silêncio dos dias a vontade de te querer. É ainda de manhã e tu estás atrasada para o trabalho e eu estou adiantado na tua vida, por isso respiro fundo do outro lado da tua imagem e espero, sentado no sótão da tua existência, lá mesmo em cima para que não me vejas, que um dia dês o salto para o outro lado da tua vida e sejas quem sempre sonhaste ser, para que te vejas ao espelho como eu já te vejo, como tu és, bela e sublime.

Adaptado de um original de Margarida Rebelo Pinto, "Ao espelho".
Disponível em: http://margarida.clix.pt/textos_ineditos_texto.php?op=44f683a84163b3523afe57c2e008bc8c