quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Desde que não chova (continuação_5)


Com o aproximar da festa, Leonor pensava cada vez mais no Luís. Foram várias as vezes que tirou a sua fotografia do fundo do gavetão e se sentou na cama, simplesmente a olhar o seu rosto e a imagina-lo agora, mais forte, mais alto e mais bonito, com a mesma frescura de menino rebelde e o mesmo olhar apaixonado. Contudo, sentia um aperto no peito, algo estranho e que nunca sentira.

Ao longo do último ano, pensou muito nele, sentiu muitas saudades, sentiu vontade de estar com ele e de o beijar novamente. Gostava dele mas interrogava-se se ele teria conhecido alguém e se apesar das cartas existia mais alguém no pensamento dele. Ao longo dos anos, Leonor foi colocando questões a si mesma e foi conseguindo dar respostas. Certo dia perguntou para si mesma, enquanto segurava a fotografia dele: “Ainda te amo, Luís?”. E a pergunta, mesmo que quase involuntária, fez todo o sentido. A ausência de resposta fez mais sentido ainda.

Os estudos estavam quase a terminar. Leonor já não era uma menina, era uma mulher. Bem educada, inteligente, sensível, prendada e muito, muito bonita. Nunca tinha namorado nenhum rapaz em Lisboa nem dava a mínima esperança a quem quer que fosse. Com o passar do tempo foi percebendo o quanto gostava de Lisboa embora sentisse que faltava sempre alguma coisa. Faltava-lhe o verde da natureza revigorante de S. Sebastião do Campo, mesmo que adorasse o movimento da cidade. Faltava-lhe o Luís embora não lhe faltassem pretendentes. Faltava-lhe amor embora tivesse carinho.

Foi percebendo com o passar do tempo que se tinha adaptado melhor a Lisboa do que esperaria, do que esperariam também os pais e a avó, embora tenha sentido a dor da mudança. Foi fazendo amigos, não muitos mas os que bastavam para não se sentir só, foi gostando do colégio e da cidade, foi crescendo e aprendendo a viver ali. Agora que os estudos terminavam, tinha vontade de seguir para a Universidade, de continuar a aprender e de continuar a crescer. Talvez medicina fosse a vocação, não sabia ainda. Insistiu em questionar-se se valeria a pena continuar a alimentar o amor com o Luís, um dia por ano, em nome da esperança de que os sonhos que construíram se tornassem realidade, agora que viviam em mundos diferentes e distantes. Não tinha respostas, continuava a questionar-se, a deambular pelas imagens e pelos cheiros que guardava no coração, pelos sonhos em conjunto, pelo que sentia por ele.

Algumas semanas antes da festa, recebeu uma carta. Foi a avó que lha entregou, em mão, e sabia bem de quem era aquela morada, conhecia bem o correspondente.
- É para ti Leonor.
- Para mim avó? – disse ela tentando disfarçar a surpresa, fazendo-se despercebida e tendo já lido o nome do remetente.
- Sim. E é de S. Sebastião. Ainda escreves aos teus amigos de lá?
- Por vezes…
- Filha, olha bem para mim. Eu sei de quem é a carta. Sei que esse rapaz gostava de ti e tu dele, mas não achas que agora és uma mulher, que tens de pensar no teu futuro?
E saiu. Não disse mais nada sobre o assunto nem falou a ninguém daquela carta. E Leonor ficou a pensar, a tentar dar as respostas às perguntas que repetia a si mesma, vezes sem conta, e para as quais não tinha ainda chegado a conclusões. No fundo, as grandes questões eram as seguintes: Ainda amava o Luís? Faziam os sonhos ainda sentido? Valia a pena correr para o passado ou o melhor era esperar o futuro?

Não sabia. Por não saber, não foi capaz de ir a S. Sebastião do Campo como fazia todos os anos, com medo de ver o Luís e ficar tão contente que não se contivesse ou tão impávida que lhe gelasse o coração. Pediu aos pais para ficar com uma amiga que faria aniversário por essa semana, filha de um casal que frequentava habitualmente a casa, e disse que a amiga ficaria triste se não contasse com a sua presença. Sem problemas levantados pelos pais, só a avó a interpelou.
- Aquela carta tem alguma ligação com o facto de não vires à terra este ano, para a festa?
- Não avó. Porque haveria de ter?
- Eu também já tive a tua idade, não te esqueças disso. Só te posso dizer que não fujas de nada nem de ninguém, que penses bem no queres para ti e para lutares por aquilo em que acreditas. Só assim serás feliz. Mas pensa que já és uma mulher e que agora a tua vida está aqui e o teu futuro é aqui.
- Eu sei avó, obrigado.

Ficou, envolvida nos seus pensamentos e nas suas questões, ainda sem resposta. Ficou em Lisboa.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Desde que não chova (continuação_4)


A imagem daquela Lisboa que via era diferente da que lhe descreviam, vezes sem fim, os pais pela correspondência. Mesmo assim, gostava da cidade e das suas ruas, de ver o eléctrico passar, de passear no Rossio, gostava daquela agitação citadina.
Os estudos corriam bem e de outra forma não poderia ser. Aprendera a bordar e a tocar piano e ainda falava um francês perceptível mas de pronúncia muito singular, muito do seu jeito de menina mulher. Leonor era muito prendada, muito bonita, com um rosto claro e brilhante, que deslizava pelas ruas da capital na companhia da família, raramente com uma amiga e nunca sozinha, como mandavam as boas maneiras. Recolhia-se em casa com um livro ou a bordar, fazia companhia à avó enquanto estudava ou aprendia os cozinhados com a mãe, que tanto gosto fazia em ensinar a filha, a luz dos seus olhos, único rebento de um amor com o único homem que conhecera. Leonor não se podia queixar do que tinha. Só de quem não tinha.
Era o seu terceiro ano no colégio, um dos melhores da cidade, com bons professores e com colegas também eles bons alunos e jovens de boas famílias. O colégio, assim como a professora de piano, as aulas particulares de francês ou a ama que a ensinara a bordar, eram um esforço que os pais faziam para que Leonor tivesse um futuro de braços abertos à sua espera, como os pais haviam sonhado para ela: bem casada, uma senhora prendada e de respeito. Tinha vivido até aos 14 anos com a avó na vila onde nascera e de onde o pai saiu para ser secretário de um banqueiro amigo de família mas que fruto da sua extrema competência e empenho, foi promovido a chefe dos serviços de secretariado do Banco, cargo honroso e respeitado, que desempenhava com o orgulho de quem cumpre uma missão. A sua mãe acompanhou o marido mas as condições não permitiam oferecer ainda à Leonor tudo o que os pais sonhavam dar-lhe, e juntamente com a incerteza dos resultados desta mudança, não havia necessidade de tirar a menina da escola e de junto dos amigos. Ficou então, com a avó, e terminado o ensino regular do 9ºano, mudaram-se ambas para Lisboa, já as condições o permitiam e a saudade o determinava. Já tinham uma casa grande, mobilada, bom emprego e grupo de amigos para o senhor, boa companhia e várias lojas para a senhora, a quem faltava ouvir as palavras sábias da mãe e a filha para educar.

Embora uma mudança seja sempre uma mudança, quando se tem apenas 14 anos, mudar do campo para a cidade, da avó para os pais, de uma escola pequena para um colégio e de amigos que conhecia desde sempre para novos rostos e novas formas de estar, é mudar demais. Leonor sentiu isso, mas nem sempre deixava transparecer. Sentiu por tudo mas muito mais por alguém que lhe incendiava o peito, alguém que era tão amigo como namorado, com quem caminhava de mãos dadas desde a escola até ao rio, ao fim da tarde. Ela amava o Luís com tudo o que é possível amar naquela idade. E amava cada dia e cada momento, cada mergulho no rio e cada passeio pelos campos, pois sabia que não lhe restava muito tempo até partir para junto dos pais e para longe dele. Talvez por isso esteve sempre preparada, sempre mentalizada que partiria, mais dia, menos dia, mas ainda assim aproveitava tudo o que podia.
Desde que chegou a Lisboa que guardou no fundo de um gavetão a fotografia dele. Voltava apenas à vila, anualmente, pelas festas de S. Sebastião do Campo. No entanto, pensava nele todos os dias, sem que ninguém soubesse da saudade que sentia e da falta que a espontaneidade dele lhe fazia. Voltava sempre com os pais quando chegava o tão esperado dia da festa, voltava para rever os amigos antigos mais genuínos que os novos, as ruas tão diferentes das de Lisboa, os cheiros tão mais intensos e revigorantes, e claro, o Luís, tão especial que o tempo passava por ele e parecia que ainda tinha 10 anos. Leonor voltou sempre à vila por tudo isto, menos nesse ano.

domingo, 18 de outubro de 2009

Desde que não chova (continuação_3)

Luís e Tó percorreram toda a pista, entraram nos coretos, foram aos bares, ao fundo do jardim, voltaram à entrada, deram mais uma volta ao percurso completo e nada.

- Ela não veio Tó. Não acredito que ela não veio. E não me respondeu à carta.

- Não sei… Pode ter acontecido algum contratempo, alguma urgência e não puderam vir.

- Pois, também não sei… Olha ali… Espera… Está ali a mãe dela!!! É a mãe dela… – Luís deu um salto, apontou na direcção da senhora que mesmo à distância e naquela confusão não deixou de reparar.

- Sim, e o pai vem atrás. Deve ser a família dela não?

- É, são os tios e a avó que nasceu cá. Foi com a avó que ela viveu até aos 14 anos antes de ir para Lisboa, lembras-te?

- Sim… E a ela já a viste?

- Pois, ela é que eu ainda não vi. Tenho de estar atento.

E esteve. Atento toda a noite, a toda a gente, a todos os pares, a todos os vestidos que rodavam com a música, mas ela não apareceu. Não foi capaz de perguntar por ela a quem quer que seja. Sentou-se já desolado, completamente de rastos, à medida que a última esperança, de que no meio da confusão ela aparecesse lhe perguntasse se demorava muito a convidá-la para dançar, se ia desvanecendo. Pensou depois se ela teria recebido a carta. Se a tinha lido. Se a tinha queimado. Se ainda se lembraria dele. Se gostaria dele ainda, como ele gostava dela. Porque não teria ela vindo com a família? Não tinha respostas…

Ainda viu, já no final da noite, o Tó a dançar com a Inês, bem agarrados, e percebeu porque ele falava tantas vezes nela. Aproveitou a distracção do amigo e saiu.

Não encontrava razão para o que tinha acontecido. Parecia que tinha esperado um ano, um ano completo, para a ver novamente e esse tempo que tanto custou a passar, fugia-lhe agora debaixo dos pés. Olhando para trás, foram dias e dias a pensar como lhe poderia oferecer um dia inesquecível que mesmo sendo um só, compensaria todo o ano que os manteve afastados. Ela vinha para a festa e no meio da confusão do baile ele puxava-a para fora, iam caminhar de mãos dadas até ao rio, passear de barco, naquele rio onde mergulhavam nos tempos de meninos, quando ele tinha 10 anos, e ia pedir-lhe que casasse com ele na igreja onde se tinham baptizado, onde supostamente ele a teria visto nesse domingo de manhã. Ela iria lembrar-se deste dia para sempre porque nunca mais o deixaria, como ele sempre imaginara.

Enquanto olhava para o rio, sentado no barco que levara para lá da margem numa escuridão só quebrada por um luar perfeito, Luís olhava para a palma da mão onde uma aliança de prata descansava depois de meses à espera que este dia chegasse. Iria perguntar-lhe se era ele que ela queria para os anos vindouros da sua felicidade, para construírem juntos uma história de amor que não conhece mais do que duas personagens que mesmo afastados no espaço estavam juntas na saudade, para se unirem e continuarem lado a lado, para darem o bisneto ao senhor Amorim e ensinarem aos filhos que basta um barco e dois remos para partir rumo à felicidade. Mas não foi assim. Ela não apareceu e o mundo desabou-lhe sobre os ombros. Chorou lágrimas e sonhos, desolado, sozinho.

Ao fundo ouviu alguém a chamar. O Tó deixou de o ver no baile e percebeu rapidamente o que se passava. Pobre Luís pensou ele. A ausência de resposta à carta deixara-o intrigado mas não quis estragar os sonhos ao amigo. Afinal, bem podia ter sido o pai dela a apanhar a carta e ela podia nem a ter lido e aparecer na mesma. Ou simplesmente não queria ver o Luís, tinha deixado de gostar dele. Não sabia, ninguém sabia…

Chamou-o da margem, esperou por ele sentado no porto. Luís chegou, lento e triste, com o rosto marcado pelos destroços dos sonhos. Juntos amarraram o barco ao porto e sem falarem seguiram caminho para casa.

Passaram no centro da vila, onde já se desmontavam as floreiras, se varriam as ruas e se apagavam as velas do caminho da procissão. Tal como a festa, também a esperança dele se tinha ido com o sol, com os foguetes e com as flores. Correu bem a festa, estava tudo bonito, tudo preparado. Como ele, bonito e preparado para lhe dar o coração. Para o ano, novas flores darão cor às ruas e novos sonhos moverão o Luís. Desde que não chova, como pedem os velhos.

sábado, 17 de outubro de 2009

Desde que não chova (continuação_2)


Um pequeno-almoço ligeiro e apressado, com o Luís impaciente, e já estavam a sair do café cinco minutos depois. Iam a uma vila ali perto, a casa de um primo do Tó, buscar um barco para levar margem acima até ao porto que juntos construíram há anos para ser mais fácil irem pescar. Umas tábuas pregadas e amarradas a umas árvores, junto a uma pedra enorme que estava ali desde sempre, era a isto que chamavam porto. Algumas horas depois já lá estava o barco, amarrado e com os remos presos.

Voltaram para o centro, mesmo a horas da missa. Entraram pelos fundos, sentaram-se separados por alguns metros, junto da família. Luís, já só pensava onde estaria Leonor. Olhou à volta, procurou um rosto claro e brilhante mas não o viu. Nem a família. Estariam atrasados? Ou simplesmente não os encontrava? Durante a missa, percorreu com os olhos todos os rostos que conseguia alcançar, sem sucesso. No final, enquanto a procissão se preparava para sair, procurou-a novamente.

- Tó! Viste a Leonor?

- Não… E tu?

- Também não. Será que se atrasou?

- Não sei. Talvez. Agora vai sair a procissão, esperamos no jardim que ela passe. É melhor irmos já na frente senão depois não passamos.

E foram. Já estavam no jardim do centro, bonito como há muito não se via, quando a procissão passou. Passou o Bispo, passaram os andores, os meninos da comunhão, os crentes, passaram todos, menos ela.

- Tem calma. Ela pode ter-se atrasado no caminho – Disse o Tó percebendo que o Luís se começava a preocupar a sério.

- Calma… calma… ela já devia cá estar! – Luís já não conseguia disfarçar a impaciência – Não sei o que se passa.

- Ela respondeu-te à carta que lhe envias-te? Disse-te que vinha?

- Não. Se calhar nem a leu. Sabes como é o pai dela. Mas ela vem sempre, já tinhamos falado sobre a festa. Porque não havia de vir este ano?

- Sei lá. Mas tem calma. Vamos almoçar e depois vamos ter ao baile. O importante é o baile, Luís.

- Está bem. Vê se não te atrasas.

- Ok. Até logo.

No caminho para casa, Luís já não disfarçava o desconforto. Esperava tê-la visto com um vestido cor-de-rosa, com os cabelos soltos e a pele clara, como sonhara noites a fio. Mas não viu.

Chegou a casa depois da família, que o esperava para o almoço. Sentou-se à mesa e mal falou. Só pela sobremesa o pai insistiu em ouvir a opinião dele sobre os gastos da comissão festiva com a procissão desse ano. Foi parco em palavras, respondeu sucintamente, e saiu de cena. Aguardou pelo café, pelo digestivo e impacientemente foi dar um curto passeio a pé com o pai e o avô, para verem como cresciam as macieiras ao fundo dos terrenos.

- Luís, então como estão as namoradas? – atirou o avô, a cortar o silêncio de meio da tarde.

- Namoradas avô? Não há namoradas.

- E nenhuma debaixo de olho, aqui na vila? – disse o pai.

- Não. Quer dizer, tenho amigas, algumas interessantes, outras nem tanto, mas não mais do que isso.

- Olha que eu quero ter bisnetos antes do descanso final! Um catraio para jogar comigo à bola e para me levar a passear… Vê se te despachas rapaz! És jovem, bonito e inteligente, decerto muitas já te têm fisgado.

- No tempo certo avô, no tempo certo…

Voltaram depois para casa, preparar-se para o baile. Luís foi o primeiro a sair. Chegou ao jardim pouco antes do Tó. As pessoas estavam a chegar, a confusão já era de notar e a música já soava bem alto.

- Já a viste? – disse o Luís assim que o Tó se aproximou.

- Não, tou a chegar agora. E tu?

- Também não. Vamos dar uma volta, pode ser que já esteja aí…

(Continua)


Desde que não chova_1



Quando soou o primeiro foguete, bem cedo pela manhã, já o Sol entrava pelas janelas. Era domingo, dia de festa, na vila todos aguardavam por este dia com mais ou menos anseio. Luís já estava acordado, havia-se levantado cedo, mal tinha dormido, passou a noite às voltas na cama. Com o som forte e seco do primeiro foguete assustou-se e fez um ligeiro corte no queixo com a lâmina de barbear. Estava distante, tinha o pensamento numa estrada de esperança e saudade que vinha de longe. Voltou aos seus pensamentos e continuou a deslizar a lâmina pela pele ainda jovem e macia, ao ritmo da música que cantava para ele próprio.
No centro da vila ainda havia uma paz matinal instalada. Daí a pouco estariam as ruas cheias de gentes da terra, homens e mulheres que não conheciam outro lugar no mundo, emigrantes e turistas. Semanas antes já se notava que a festa estava a chegar, com arranjos nas ruas e nos jardins, uma pintura de fresco, uma estrada que se compõe e umas flores que se colhem para enfeitar o caminho da procissão. As senhoras escolhiam os vestidos e os senhores tratavam de que nada faltasse ao senhor Padre para receber o senhor Bispo. No dia, usava-se o serviço de mesa que estava arrumado para a ocasião e recebia-se um tio afastado que volta à terra para a festa. Iam à missa, comungavam, saía a procissão com os andores até à capela e já com o sol a pico voltavam para o almoço. O vinho que estava guardado na cave via luz finalmente, a rolha estalava como os foguetes vindos da igreja, comia-se bem e bebia-se melhor, pela tarde fora, até que fossem horas do baile. Era assim, sempre assim, sem grandes novidades, era aquilo a que se habituaram a chamar tradição. Como diziam os velhos, “desde que não chova…”

Luís tinha-se levantado cedo como não se lembrava. O dia era especial por um só motivo, mas não era pela festa em si. Não era pela festa mas por quem vinha com ela, numa estrada que nunca lhe parecera tão longa. Depois do barbear e do banho vestiu-se sem tirar os olhos do espelho ao fundo do quarto, apreciando como lhe assentava a camisa nova. Desceu as escadas, passou os corredores e encontrou a mãe na cozinha a ultimar os doces para o almoço.

- Bom dia Luisinho! Tão cedo e já acordado?
- Bom dia! Luís mãe, é Luís… quando me chamas Luisinho parece que tenho 10 anos… Sim, vou ter com o Tó ao centro e depois encontro-vos na igreja, está bem?
- Sim, mas não te atrases. E já agora, para mim tens sempre 10 anos… - Ao dizer isto a mãe apercebe-se do quanto ele realmente cresceu. Cresceu tanto que está um homem. Mas parece que continua a ter 10 anos.

No café do centro, já lá estava o António, Tó como lhe chamava, amigo de sempre do Luís, desde os tempos da escola, do futebol na rua e das primeiras namoradas. Conheciam-se bem, liam-se nos olhos e estavam lá sempre um para o outro, no melhor e no pior. Nesse dia, o Luís precisava do Tó e ele não lhe falhou.

- Bom dia alegria! - saudou o Tó
- Bom dia. Isso é tudo sono? – Ironizou o Luís, sabendo que o amigo nunca acordaria àquela hora se não fosse por ele.
- E isso é tudo amor? – Respondeu o Tó com a mesma ironia.
- Claro que é! Já pediste o pequeno-almoço?
- Ainda não.
- Então vamos pedir. Temos de nos despachar, não quero chegar tarde à missa, por essa hora a Leonor já lá deve estar.
(Continua em breve)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

quente como a chuva


Enquanto te voltas para mim, confiante de que eu não sei quem realmente és, eu paro. Sinto em vez de pensar, porque há momentos assim, em que ficamos bloqueados de movimentos e libertos de sentidos. Sinto que tens razão quando me dizes que não te conheço realmente, porque a cada momento inventas um novo sorriso. Sinto que és especial, não só por seres diferente no pensar mas porque também o és no ser, no olhar e no sentir. Não é isto que eu penso, porque não penso. É isto que sinto! É o que me dizem as tuas mãos quando pegas as minhas, o que me dizem os teus lábios quando me beijas ardentemente, o que me dizes tu quando me acordas dos sonhos com palavras doces.

Não te conheço. Se te conhecesse gostaria menos de ti, talvez. Se te conhecesse gostaria mais de ti, não sei. Não penso no quão gosto de ti. Gosto de ti, sinto que gosto de ti e gosto de o sentir.

Quando não te conhecia, pensava demais. Pensava em mim, pensava no que fazia, no que dizia, no que pensava, e pensava, pensava, pensava…. Não sentia! Porque sentir é galgar no tempo, é não te dar hipótese de me parares, é arrancar-te do chão, prender-te no peito e beijar-te com o vigor da chuva, quente como o desejo, que me nutre a paixão.

Quando te voltas para mim, sabes que não te conheço mas sabes que gosto de ti. Não penses nisso, porque pensar é parar. Pensar endurece os corações e o teu é de veludo. Sentir embala os prazeres e isso mantém-nos vivos. Sente isso, fecha os olhos, pára a respiração e sente que eu já te conheço porque te aperto contra mim e te sinto nos lábios enquanto as palmas se tocam e os dedos se enlaçam.

Quando te voltas para lá, para esse mundo onde não vivo, não sinto nem penso, voltas-me as costas confiante de que ainda não me conheces, e por isso, não queres que eu te veja a chorar. Partes sem pressa de chegar, com uma lágrima a escorrer, e então, esperas que volte a mesma chuva quente que nos regava a paixão, para disfarçar essa gota de sentimento. Eu, que te ensinei a sentir em vez de pensar, desejo agora que não sintas que é tarde demais mas que penses que voltarás, um dia, à terra onde chove quente tão quente que aquece os corações, para eu te apertar novamente no peito e te beijar como nunca. Mas é tarde demais porque agora, sentir é uma dor insuportável e pensar… pensar endurece os corações.